Com os alunos de duas turmas de Português Língua Não Materna da Escola Secundária Gil Vicente realizámos dezasseis horas de aulas. As aulas tiveram por objetivo a concretização de atividades sonoras em torno da consciência, do reconhecimento, da interpretação e da criação de ligações afetivas e identitárias nos bairros de Alfama, Mouraria, Graça e Arroios, através do som, como também na descoberta de um mundo subjetivo e coletivo sonoro na paisagem multicultural destes bairros. O resultado desta exploração sonora teve como resultado a recolha de um acervo sonoro que se apresenta neste site e a criação de quatro peças sonoras compostas por Fernando Ramalho.
Os exercícios, dentro e fora de aula, centraram-se na iniciação à consciência sonora, para facilitar uma aproximação a um entendimento da paisagem quotidiana. Com itinerários pelo bairro, explorámos a identidade sonora, corporal e espacial dos lugares. Os alunos percebem a realidade envolvente através da prática de gravação do som do ambiente com o uso dos telemóveis. Os alunos descobriram os ritmos do espaço e a relação com o seu próprio corpo. Gravaram sons ambientais, bem como os sons criados na interação ativa dos seus corpos, dos seus gestos, das suas ações e da sua fala no espaço.
Como trabalho de casa, pedimos aos alunos que observassem o seu quotidiano fora da escola e partilhassem connosco os sons familiares dentro e fora das suas casas. Esta descoberta pessoal reformula a sua presença no espaço urbano. Também pedimos aos alunos que explorassem e partilhassem connosco a sua memória sonora de sons que só existem nos seus países de origem, os quais fazem parte de um património emocional que os enraíza no seu passado e a territórios distantes. Há também sons que só existem em Lisboa e que os alunos ouviram pela primeira vez após a sua chegada à cidade. Todos eles eram sons surpreendentes, que causavam estranheza quando eram ouvidos pela primeira vez. Através destes exercícios procurou-se apelar, por um lado, à construção de um discurso sobre a memória sonora cultural dos alunos, bem como, por outro, a uma prática de escuta do seu quotidiano. Nessa interseção entre memória e quotidiano, os alunos construíram uma perceção, através do som, das ruturas e continuidades entre os lugares de procedência e Lisboa.
Uma outra linha de aproximação é a música, procurando perceber em que medida os interesses musicais dos alunos intervêm na construção da sua identidade cultural. Os alunos compararam os seus diferentes gostos musicais e culturais, encontrando também um ponto de transversalidade cultural. Estas bandas sonoras, presentes nos seus telemóveis, acompanham o seu dia-a-dia na descoberta da cidade.
Por fim, um pilar essencial deste projeto é o estudo da fala entendida quer como forma sonora quer como instrumento de comunicação. Na aula falam-se dezasseis línguas diferentes, à parte o português (chinês, japonês, vietnamita, hindi, nepali, bengali, punjabi, harayanni, tagalog, árabe, wolof, yoruba, crioulo, romeno, francês e inglês). Procurámos entender a partir de que ponto do domínio da língua estranha do lugar para onde se vai é que a fala deixa de ser entendida «apenas» como som e adquire os significados necessários para que possa também ser um instrumento de comunicação. O ponto de partida é, portanto, o entendimento da fala como, simultaneamente, um significante e portadora de significado. Trabalhámos com noções como a musicalidade das línguas e os ritmos da voz e da linguagem. Explorámos a voz, a sua própria língua e o discurso falado como uma forma de disrupção e dessincronização que constitui parte da integração sonora do próprio corpo e do eu individual no espaço sonoro do bairro. A fala é um instrumento de comunicação, mas as diferentes dezasseis línguas do grupo foram ouvidas como variações sonoras rítmicas diferentes. Outros exercícios relativos à fala e a língua partiram da escuta de uma fonte sonora do ambiente urbano, para posteriormente reproduzir os sons através das vozes dos alunos e na transcrição com o uso de onomatopeias.